quarta-feira, 17 de abril de 2013

O racismo retratado na literatura e na Bíblia requer contextualização

Recentemente, movimentos sociais de defesa dos negros se manifestaram contra o uso, nas escolas, de obras do escritor Monteiro Lobato, em razão de um suposto cunho racista.  

Muitos se exaltaram contra esses movimentos e em defesa da liberdade de criação, em defesa da obra de Monteiro Lobato...E se equivocaram pois não se tratava de censurar uma obra literária mas de avaliar a adequação do seu uso em sala de aula.

A rigor, nem seria apropriado o uso do termo "racista" para qualificar obras que, escritas no início do século XX,  retratam atitudes corriqueiras no contexto pós-abolição, quando era outro o ordenamento jurídico brasileiro.

Mas é fundamental reconhecer que a fidelidade do autor, ao retratar os costumes da época, como faz  Monteiro Lobato, requer o suporte de uma proposta pedagógica visando a discussão desse contexto, sempre que se adote obras escritas no período. 

Evidentemente, a intelectualidade e os políticos da primeira metade do século XX eram, explicitamente, racistas, com raríssimas exceções. Esse fato não pode ser ignorado pois a personalidade, os valores, os princípios dos autores vão permear a obra. Portanto, será necessário contextualizar.

Nada há, no conto "Negrinha", que denote uma intenção do seu autor, Monteiro Lobato, de denunciar o comportamento escravocrata da patroa que maltratava a personagem-título, uma criança de sete anos. É, simplesmente, um relato, um conto que retrata um período em que as coisas eram como eram. A denúncia, então, precisa ficar por conta de quem orienta a leitura, mostrar que o país, deliberadamente, vem se desvencilhando desse passado vergonhoso, em que era lícito maltratar criancinhas negras.

Foi por essa razão que os Mestres em Educação Antonio Gomes da Costa Neto e Elzimar Maria Domingues pleitearam, junto à CGU, dentre outras providências, "...a suspensão da  distribuição da obra e de aquisições posteriores...".

Alegam, em petição datada de 25/09/2012, que não foram atendidos os requisitos ditados pelo Ministério da Educação para a execução do Programa Nacional Biblioteca na Escola - PNBE uma vez que a obra selecionada, ou seja o conto "Negrinha", não se fazia acompanhar da biografia do autor e contextualização:
"A biografia do(s) autor(es) deverá ser apresentada de forma a enriquecer o projeto gráfico-editorial. Ela deve promover a contextualização do autor e da obra no universo literário. Igualmente, outras informações devem ter por objetivo a ampliação das possibilidades de leitura, em uma linguagem adequada aos jovens, e com informações relevantes e consistentes."
Observaram, os Mestres, que no lugar desses requisitos, constou, apenas, uma apresentação da obra com a seguinte afirmação:
"Trata-se, portanto, de um conto que põe por terra a ideia de um Monteiro Lobato racista. Aqui, ao contrário, ele denuncia de forma categórica um regime desumano que continuava na mentalidade e nos hábitos do senhorio décadas após a abolição."
O fato é que, da leitura de um trecho do conto, transparece a necessidade dessa contextualização, sob pena de se incorrer no grave equívoco de se tratar um episódio de violência contra uma criança negra com a mesma naturalidade com que é perpetrada, pela algoz, e relatada por Monteiro Lobato:
"Conserva Negrinha em casa como remédio para os frenesis. (fl. 21). Ai! Como alivia a gente uma boa roda de cocres bem fincados!... Tinha de contentar-se com isso, judiaria miúda, os níqueis da crueldade. Crocres:  mão fechada com raiva e nós de dedos que cantam no coco do paciente. Puxões de orelha: o torcido, de despegar a concha (bom! bom! Gosto de dar!) e o a duas mãos, o sacudido. A gama inteira de beliscões: do miudinho, com a ponta a unha, à torcida do umbigo, equivalente ao puxão de orelha. A esfregada: roda de tapas, cascudos, pontapés e safanões à uma – divertidíssimo! A vara de marmelo, flexível, cortante: para “doer fino” nada melhor!Era pouco, mas antes isso do que nada (fl. 21).[...] Lá quando em quando vinha um castigo maior para desobstruir o fígado e  matar as saudades do bom tempo."
Os autores da petição fundamentaram-se, também em trechos de cartas escritas por Monteiro Lobato que,  nos dias de hoje, constituiriam prova suficiente do crime de racismo, fosse quem fosse o seu autor:

"Mulatada, em suma. (…) País de mestiços onde o branco não tem força para organizar uma Klux-Klan é país perdido para altos destinos. (…) Um dia se fará justiça ao Klux-Klan; (…) Tivéssemos aí uma defesa dessa ordem, que mantém o negro no seu lugar, e estaríamos hoje livres da peste da imprensa carioca — mulatinho fazendo o jogo do galego, e sempre demolidor porque a mestiçagem do negro destroem (sic) a capacidade construtiva.”
Em carta a Arthur Neiva, Nova York, 1928
"Os negros da África (…) vingaram-se do português de maneira mais terrível, amulatando-o e liquefazendo-o, dando aquela coisa residual que vem dos  subúrbios pela manhã . (…) Como consertar essa gente? Como sermos gente, no concerto dos povos?"
A Godofredo Rangel, 1908.
Se, em relação a Monteiro Lobato, muitos se levantaram tratando quase como uma heresia as sensatas reflexões dos movimentos de negros do país, imaginem, então, se questionarmos o texto bíblico em que o estupro, o assassinato, a matança de crianças é sugerida sem rodeios?

No entanto, valeria, para a Bíblia, as mesmas reflexões: é necessário contextualizar. Se as igrejas não o fazem por considerar o "livro sagrado" irretocável, pelo menos os seus pastores deveriam ser criminalizados todas as vezes em que utilizassem publicamente o texto bíblico para perseguir, injuriar, discriminar os diferentes, negros, judeus e homossexuais.

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